Administración & Cidadanía (A&C)
Vol. 14, n. 2 (xullo-decembro) 2019
Sección: Artículos
ISSN: 1887-0287
https://doi.org/10.36402/

Ciudades sostenibles: la construcción de un nuevo paradigma a partir de la hermenéutica filosófica de Hans-Georg Gadamer

Cidades sustentáveis: a construção de um novo paradigma a partir da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer1

Sustainable cities: the construction of a new paradigm from the philosophical hermeneutics of Hans-Georg Gadamer

Alessandra Antunes Erthal

Integrante del Grupo de investigación “Metamorfose Jurídica”

Centro de Ciências Jurídicas e Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGDir)

Universidade de Caxias do Sul (UCS/Brasil)

Advogada

aaerthal@gmail.com

Cleide Calgaro

Professora da graduação e do

Programa de Pós-Graduação em Direito- Mestrado/Doutorado

Universidade de Caxias do Sul (UCS/Brasil)

ccalgaro1@hotmail.com

Ricardo Hermany

Professor da graduação e do

Programa de Pós-Graduação em Direito- Mestrado/Doutorado

Universidade de Santa Cruz do Sul (UNICS/Brasil)

hermany@unisc.br

Recibido: 10/12/2019 | Aceptado: 16/01/2020

https://doi.org/10.36402/ac.v14i2.113

Resumo: A hermenêutica filosófica de Gadamer ampla e desvincula-se do modelo cientificista, que já não suprem mais as demandas, e oferece respostas para solucionar a crise ambiental. A hermenêutica filosófica se propõe a superação dos paradigmas dogmáticos e auxilia na construção de paradigmas mais adequados as modificações ambientais enfrentadas pela sociedade contemporânea. Nesse sentido, o trabalho, através da estrutura metodológica dedutiva e bibliográfica, tem como foco a construção de um novo paradigma para a efetivação de cidades sustentáveis, a partir das perspectivas jurídica e filosófica, discutindo não só os elementos institucionais e normativos relacionados à questão, mas também e, principalmente, as implicações sociais, sugerindo um olhar de emergência para o enfrentamento dos problemas, e ideias e caminhos alternativos à efetivação do direito à cidade sustentável.

Palavras-Chave: Cidades Sustentáveis, Gadamer, hermenêutica filosófica.

Resumen: La hermenéutica filosófica de Gadamer amplía y se desvincula del modelo cientificista, que ya no satisface las demandas, y ofrece respuestas para solucionar la crisis ambiental. La hermenéutica filosófica propone superar los paradigmas dogmáticos y ayuda a construir paradigmas más adecuados a los cambios ambientales a los que se enfrenta la sociedad actual. En ese sentido, el trabajo, a través de la estructura metodológica deductiva y bibliográfica, se centra en la construcción de un nuevo paradigma para conseguir ciudades sostenibles, a partir de las perspectivas jurídica y filosófica, debatiendo no solo sobre los elementos institucionales y normativos relacionados con el tema, sino también, y especialmente, sobre las implicaciones sociales, sugiriendo un enfoque de urgencia a la hora de enfrentarse a los problemas, así como ideas y vías alternativas para la implantación del derecho a la ciudad sostenible.

Palabras clave: Ciudades sostenibles, Gadamer, hermenéutica filosófica.

Abstract: Gadamer’s philosophical hermeneutics broadens and detaches itself from the scientific model, which no longer meets the demands, and offers answers to solve the environmental crisis. Philosophical hermeneutics proposes to overcome dogmatic paradigms and assists in the construction of paradigms that are more appropriate to the environmental changes faced by contemporary society. In this sense, the work, through the deductive and bibliographic methodological structure, focuses on the construction of a new paradigm for the realization of sustainable cities, from the legal and philosophical perspectives, discussing not only the institutional and normative elements related to the issue, but also and, mainly, the social implications, suggesting an emergency view to face the problems, and alternative ideas and paths to the realization of the right to a sustainable city.

Key-Words: Sustainable Cities. Gadamer. Philosophical Hermeneutics.

Sumario: 1 Introdução. 2 As cidades sustentáveis. 3 A hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer. 4 A hermenêutica filosófica de Gadamer como fundamento para as cidades sustentáveis. 5 Considerações finais. 6 Referências.

1 INTRODUÇÃO

O modelo de desenvolvimento humano fundou-se na vida em comunidade tendo as cidades como sustentáculo para toda a estruturação de organização sendo esta apresentada, nas palavras de Alexander Mitscherlich2, ora como monstros da loucura do poder, ora como a solução do “progresso”.

Certo é que, em nossa sociedade contemporânea, mesmo que duvidoso seja esse progresso, há o reconhecimento do direito de viver com dignidade e com qualidade de vida.

Dessa maneira, desenvolver cidades sustentáveis para assegurar qualidade de vida e dignidade virou plano de ação da Organização das Nações Unidas (ONU) que assumiu um conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Mostra-se importante refletir sobre o contexto atual das cidades sustentáveis, seu fundamento jurídico-constitucional, uma vez que as inferências decorrentes de um meio ambiente urbano, onde se desenvolve a vida manifesta, submete-se a um conjunto de deveres e direitos assegurados por um sistema jurídico.

Assim, a construção de cidades sustentáveis por meio dos antigos paradigmas mostra-se improvável, pois os paradigmas existentes já não suprem mais as crises contemporâneas, visto que ao surgimento de qualquer inversão causam desordem em todo o sistema jurídico.

E nessa linha segue o presente trabalho, o qual trata de alguns pontos mais cruciais da crise ambiental urbana, aplicando a perspectiva de um novo paradigma ambiental por intermédio da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer.

A hermenêutica, tradicionalmente, refere-se ao estudo da interpretação de textos escritos, especialmente nas áreas de literatura, religião e direito. No entanto, o enfoque do presente estudo é a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer.

A hermenêutica filosófica de Gadamer é mais ampla e desvincula-se do modelo cientificista, que já não suprem mais as demandas, e oferece respostas para solucionar a crise ambiental.

Como campo de estudo, a hermenêutica filosófica se propõe a superação dos paradigmas dogmáticos e auxilia na construção de paradigmas mais adequados as modificações ambientais enfrentadas pela sociedade contemporânea.

Nesse sentido, o trabalho foca na construção de um novo paradigma para a efetivação de cidades sustentáveis, a partir das perspectivas jurídica e filosófica, discutindo não só os elementos institucionais e normativos relacionados à questão, mas também e, principalmente, as implicações sociais, sugerindo um olhar de emergência para o enfrentamento dos problemas, e ideias e caminhos alternativos à efetivação do direito à cidade sustentável.

No primeiro momento será apresentada as cidades sustentáveis, partindo de seus momentos históricos, até o advento da Declaração Rio-92, da Constituição Federal Brasileira de 1988 e o surgimento do Estatuto da Cidade.

No segundo momento, expõe-se a hermenêutica filosófica através de uma análise específica de hermenêutica filosófica de Gadamer. Na terceira parte, serão apresentadas as perspectivas para novos paradigmas ambientais baseados na hermenêutica filosófica de Gadamer para o alcance da efetivação de cidades sustentáveis.

Assim, o presente estudo propõe uma quebrar paradigmas sabendo que ambiental não se limita ao aprendizado apenas das ciências ambientais, mas pressupõe que traga a questão do ser no tempo, na história, um reconhecimento da alteridade. A complexidade do tema propõe que um reconhecimento do mundo, que reconheça a incompletude do ser e as limitações de conhecimento3.

2 AS CIDADES SUSTENTÁVEIS

As repercussões socioambientais consequentes do crescimento desordenado das cidades contemporâneas são catastróficas. O declínio do modelo de desenvolvimento urbano resta evidente nos casos cada vez mais frequentes de catástrofes ambientais, como enchentes, mudanças climáticas, trânsito caótico, aumento de doenças, em suma, disparidades existentes. Desse modo, Alexander Mitscherlich:

O mal-estar nas nossas cidades será a base da qual partiremos. Descontando as qualificações positivas com as quais elas são ornadas, preponderam as que as desvalorizam e envergonha. “Sujo”, “poluído” e “obscuro” são adjetivos que se atribuem mais a bairros antigos que datam da época do início da industrialização4.

Para uma melhor compreensão do tema, faz-se necessário considerar o contexto histórico, a fim de compreender a conjuntura atual das cidades sustentáveis.

Inicialmente, merece menção a fonte da problemática ambiental, uma vez que as questões ambientais identificam uma preocupação tardia, assim, primordialmente o meio ambiente foi apresentado como um objeto a ser conquistado pela raça humanada. Dessa maneira, Granziera caracteriza:

A rigor, a proteção do ambiente não faz parte da cultura nem do instinto humano. Ao contrário, conquistar a natureza sempre foi o grande desafio do homem, espécie que possui uma incrível adaptabilidade aos diversos locais do planeta e uma grande capacidade de utilizar os recursos naturais em seu benefício. Essas características fizeram com que, ao longo do tempo, a natureza fosse dominada pelo homem na busca do seu desenvolvimento, não se preocupando, no entanto, com os danos que causava5.

Também, conforme Granziera6 considera-se como marco inicial a descoberta do fogo para a raça humana, pois essa elevou o domínio do espaço geográfico. Com tal descoberta somado ao avolumamento da espécie, o homem destruiu florestas na busca de espaços para cultivar os alimentos de sua subsistência e, principalmente, para construir sua moradia, a fim de defender-se dos inimigos.

Nos ensinamentos de José Afonso da Silva7, o desenvolvimento histórico dos aglomerados urbanos percorre três estágios. No estágio, chamado pré-urbano, as primeiras cidades estabeleceram-se por volta do ano 3.500 a.C. no vale compreendido pelo Tigre e o Eufrates. Assim, o estágio pré-urbano que consistia em pequenos grupos homogêneos e autossuficientes, dedicando inteiramente à busca de alimentação.

Sobre o segundo estágio, o Autor completa:

O segundo estágio começa com o aparecimento da cidade e corresponde, no esquema de Sjoberg, à sociedade pré-industrial, quando já se dispunha da metalurgia, do arado e da roda, elementos capazes de multiplicar a produção e facilitar as distribuições; conta-se também com a palavra escrita8.

O terceiro estágio, para Silva9, é o da cidade industrial moderna, associada a uma organização humana mais complexa, caracterizado pela massa, um sistema de classes fluido e um tremendo avanço tecnológico que usa novas fontes de energia. Sobre o terceiro estágio, pode-se mencionar a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra no século XVIII, que desencadeou no que seria mais tarde a conhecida civilização industrial.

Embora a Revolução Industrial tenha desencadeado um novo pensar em razão dos seus impactos sociais decorrentes da industrialização, foi no século XX que o “pensar ecológico” ganhou novos contornos, tanto na esfera internacional, quanto na sociedade brasileira.

Tal período é significativo uma vez que o modelo econômico do século XX fundou-se na utilização do produto interno bruto (PIB) para averiguação de crescimento; no entanto, este modelo alicerçado em quantidade numérica (gráficos, índices) e não em qualidade (educação, acesso, saúde, etc.), não respondeu aos clamores sociais, gerando assim as disparidades sociais.

Dessa maneira, torna-se apropriado a indagação de Silva, ao lembrar que a cidade vem sofrendo profunda transformação qualitativa, de modo que, hoje, ela não é meramente uma versão maior da cidade tradicional, mas uma nova e diferente forma de assentamento humano, o que provoca problemas jurídicos-urbanísticos específicos. In verbis:

O que é, então, a cidade? Fixar seu conceito não é fácil. Para chegar-se à sua formulação, cumpre lembrar que nem todo núcleo habitacional pode receber o título de “urbano”. Para que um centro habitacional seja conceituado como urbano torna-se necessário preencher, no mínimo, os seguintes requisitos: (1) densidade demográfica específica; (2) profissões urbanas de comércio e manufaturas, com suficiente diversificação; (3) economia urbana permanente, com relações especiais com o meio rural; (4) existência de camada urbana com produção, consumo e direitos próprios. Não basta, pois, a existência de um aglomerado de casas para configurar-se um núcleo urbano10.

Todavia, nem todo núcleo urbano constitui cidade. Para Silva11, sobre esse ponto de vista, três concepções merecem destaques relativas ao conceito de “cidade”: (a) a concepção demográfica; (b) a concepção econômica; (c) a concepção de subsistemas.

Sobre as três concepções, ensina Silva:

O conceito demográfico e quantitativo de “cidade” é muito difundido, pelo qual se considera cidade o aglomeramento urbano com determinado número de habitantes. A concepção econômica de “cidade” apoia-se na doutrina de Max Weber. Fala-se em “cidade” nesse sentido “quando a população local satisfaz a uma parte economicamente essencial de sua demanda diária no mercado local e, em parte essencial também, mediante produtos que os habitantes da localidade e a população dos arredores produzem ou adquirem para colocá-los no mercado”. A terceira concepção considera a “cidade” como um conjunto de subsistemas administrativos, comerciais, industriais e socioculturais no sistema nacional geral12.

Assim, a efetiva discussão sobre o desenvolvimento sustentável foi difundida com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, celebrada no Rio de Janeiro –Brasil– em 1992.

Na Declaração Rio-92 o desenvolvimento sustentável funda-se na ética da solidariedade intergeracional, de modo que relaciona o desenvolvimento entre as interações das necessidades das presentes e futuras gerações13. Ademais, a Declaração Rio-92 promove o dever dos Estados a reduzir e eliminar padrões insustentáveis de produção e de consumo14.

Com o advento da Constituição Brasileira de 1988 consagra-se no Brasil o desenvolvimento sustentável. O atual sistema normativo Constitucional Brasileiro apresenta a expressão “função social” das cidades, mencionada no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, a fim de proporcionar aos seus habitantes o direito à vida, à segurança, à liberdade, à igualdade, bem como garante piso vital para os direitos sociais do artigo 6º, como saúde, educação, lazer, entre outros tantos.

Dessa forma, tem-se a consolidação do direito à cidade. A respeito de tanto, plausível as disposições de Elenise Felzke Schonardie15 “a questão urbana passou a ser tratada sob o viés dos direitos fundamentais, na medida em que a Constituição Federal de 1988 garante, como fundamental, em razão de seu conteúdo, o direito à cidade”.

Nesse sentido, merece destaque os ensinamentos de Nelson Saule Junior, corroborando a ideia de direito à cidade como um direito fundamental:

[...] que o direito à cidade tem como elementos os direitos inerentes às pessoas que vivem nas cidades em ter condições dignas de vida, de exercitar plenamente cidadania e direitos humanos (civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais), de participar da gestão da cidade, de viver num meio ambiente ecologicamente equilibrado e sustentável16.

Portanto, o direito à cidade sustentável constitui-se em um direito fundamental e como tal, o exercício do direito depende a própria realização humana17. Portanto, a compreensão de cidadania pertence ao acesso ao desenvolvimento sustentável nos meios urbanos. Sobre a consolidação do direito a cidades sustentáveis, apesar da proteção Constitucional Federal Brasileira de 1988, a proteção foi reafirmada pela Lei 10.257/01 que instituiu o Estatuto da Cidade.

Acerca do Projeto de Lei n. 5.788/1990, que visava a estabelecer o Estatuto da Cidade, o Congresso Brasileiro discutiu o assunto por mais de uma década. O retardamento para a aprovação deu-se em razão da complexidade do tema, considerando as possíveis repercussões no sistema jurídico brasileiro, uma vez que o dispositivo dispõe sobre a função social da cidade, bem como impõe restrições a propriedade urbana18.

Dessa maneira, surgiu a Lei n. 10.257/2001, denominada de Estatuto da Cidade, que foi editada em cumprimento da previsão Constitucional, nos termos do artigo 182 da Constituição Federal, fixando regras gerais sobre a política urbana.

As referências normativas constante no Estatuto da Cidade são de ordem pública e interesse social, conforme seu artigo 2º, ao definir à cidade sustentável “como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”19.

Entretanto, o Estatuto da Cidade, em decorrência da crise generalizada de moradia e a reprodução de formas urbanas ilegais, traz princípios de planejamento participativo e da função social da propriedade, que tem a pretensão de dar suporte jurídico à ação dos governamentais para reconstruir a ordem urbanística e obter a cidade sustentável.

Nesse sentido, Saule Junior leciona:

[...] a concepção de política urbana adotada no Estatuto da Cidade deve ser seguida pelos entes federativos como indutora da política habitacional, que deve ser executada por seus órgãos e instituições, como forma de cumprirem o dever de proteger e viabilizar o exercício do direito à moradia20.

Portanto, os instrumentos jurídicos, como o Estatuto da Cidade, com o princípio da democracia participativa, precisam ser utilizados como forma de concretizar e garantir o direito a cidades sustentáveis, em razão do direito à cidade sustentável não dizer somente respeito aos direitos do indivíduo, atingindo a coletividade, determinada ou indeterminada de indivíduos, um Estado que necessita ser pensado sob a ótica transindividual e interdisciplinar.

Tendo as cidades conquistado um lugar sem precedentes na história, por meio de um processo de urbanização, estabeleceram-se estas como o suporte da vida moderna, pode-se afirmar que as essas transformaram-se na própria manifestação da sociedade. Dessa maneira, nas cidades desenvolve-se o pior e o melhor da sociedade21.

Assim, o que acaba se sobressaindo, na prática, são os impactos negativos como a ausência de moradia, de saneamento ambiental, de infraestrutura urbana, de transporte, da saúde, da educação, da cultura, entre outros.

Os conflitos socioambientais decorrentes do processo de urbanização estão expostos ao cotidiano, como moradias inadequadas, irregulares e em áreas de risco, desigualdades na distribuição de renda, precariedade de áreas de lazer e convivência, descontrolada produção de resíduos, perda da qualidade do ar, tráfego intenso de automóveis.

O que se verifica não é a inércia ou o desamparo do poder público sobre o tema, mas uma disparidade entre o que o legislador assegura com a real situação das cidades contemporâneas brasileira. Assim, a abertura que o Direito ambiental propõe, no sentido de que sempre há fendas, seja pela valoração de elementos, pela utilização de termos ou pela falta de referências, é um espaço para o desenvolvimento da hermenêutica filosófica gadameriana.

A mudança é a essência das coisas. A hermenêutica filosófica propõe a mobilização do ser, para torná-lo pertencente a história. Bem além da preocupação com a mera reprodução do sentido das normas de Direito ambiental, ambiciona-se uma nova visão interpretativa, a abertura do direito ao diálogo e a assimilação das disparidades, para nascer uma verdadeira proteção ambiental.

3 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE HANS-GEORG GADAMER

Hans-Georg Gadamer aborda o viés das condições e possibilidades do conhecimento baseando-se na compreensão enquanto experiência humana. Na introdução de sua principal obra sobre o tema, ele expõe a importância da interpretação:

[...] desde sua origem histórica, o problema da hermenêutica ultrapassa os limites que lhe são impostos pelo conceito metodológico da ciência moderna. Compreender e interpretar textos não é um expediente reservado apenas à ciência, mas pertence claramente ao todo da experiência do homem no mundo22.

Gadamer não se preocupava em oferecer uma teoria geral de interpretação ou apresentar uma nova doutrina acerca dos métodos, mas em estabelecer o que há de comum nas diferentes maneiras de compreender. Para Navarro, essa construção pode ser vista da seguinte forma:

A hermenêutica filosófica, ao contrário das teorias interpretativas antecessoras, não está preocupada com a elaboração de um método interpretativo que fundamente a compreensão. Sua preocupação vai além dos métodos, propondo-se a demonstrar algo que é anterior à utilização dos métodos, precedendo a ciência moderna. Assim, não se trata de elaborar uma teoria geral da interpretação, mas sim encontrar o ponto em comum de todas as formas de compreensão, mostrando que não se trata de um mero comportamento subjetivo frente a um objeto, mas sim frente a uma historicidade da qual o próprio intérprete faz parte23.

Nesse sentido, Bleicher elucida: “A filosofia de Gadamer completa a teoria ontológica-existencial da compreensão e, simultaneamente, constitui a base da sua superação, através da tônica na linguisticidade da compreensão”24.

Gadamer desvincula a hermenêutica de uma simples teoria da interpretação. Importa destacar que é em sua obra intitulada Verdade e método que Gadamer constrói essa nova perspectiva teórica para a hermenêutica.

Gadamer declara que o ponto de partida para sua obra é a obra de arte. A ideia da obra de arte é interessante. Gadamer observa que ao tratar de arte, jamais será compreendida totalmente, assim, quer dizer que existe uma aproximação, mas não há uma resposta completa. Dessa forma, afirma o autor:

A obra de arte caracteriza-se sobretudo pelo fato de jamais podermos compreendê-la completamente. Isso quer dizer que se nos aproximarmos dela e a interrogarmos jamais receberemos uma resposta definitiva a partir da qual possamos afirmar “agora eu sei”. Dela não se extrai uma informação precisa – e ponto!25.

Para entender a hermenêutica gadameriana, precisa-se voltar a questão das ciências do espírito. O filósofo se preocupava com as ciências do espírito, pois para ele falta a questão de compreensão para tornar essa ciência mais legítima. Primeiramente, na teoria gadameriana as ciências do espírito é indagação para a filosofia. Assim, nas palavras de Gadamer:

[…] Será que, no fim, o que há de científico nas ciências do espírito depende mais do tato de que de sua metodologia? Por darem motivo a essa indagação e, com isso, resistirem à sua inclusão no conceito de ciência da modernidade, as ciências do espírito foram e continuam sendo um problema da própria filosofia26.

Em Gadamer, a busca da verdade universal por meio de métodos é inconcebível no que se refere as ciências do espírito. Ademais, ele se preocupa com as ciências do espírito, pois, conforme supramencionado, a falta da aproximação com a questão da compreensão tira parte de sua legitimidade.

A fim de conceber o que Grodin27 apresenta como a virada ontológica, Gadamer evidencia em sua obra justamente problemática das ciências do espírito. Para Grondin, a problemática do método inicia pela seguinte questão:

É inegável que a busca de uma verdade universalmente válida ameaça encobrir a realidade da compreensão, direcionando-a para um ideal de conhecimento que ela jamais irá concretizar28.

Gadamer, ao analisar a questão das ciências do espírito, além de defender a insustentabilidade da ideia de um conhecimento universalmente válido, aborda questionamentos acerca do historicismo. A questão do historicismo, que será tratada posteriormente, foi considerada de forma secundária por Heidegger, entretanto, para Gadamer tornou-se principal.

Também o Autor reconhece que a sistematização dos métodos é útil para o trabalho da hermenêutica, porém não pode limitar tudo a um método científico. Navarro acrescenta:

Em Gadamer, existe uma antinomia entre distanciamento alienante e pertença. O primeiro está vinculado à metodologia objetivante típica das ciências naturais, enquanto o segundo evidencia nosso pertencimento ao objeto estudado. Assim, Gadamer nos leva a uma escolha que transparece no título de sua obra Verdade e método29.

Lixa também alerta que não significa que Gadamer deixa menospreza as questões de metodologia, mas para ele a tarefa da hermenêutica se torna maior, pois: “trata de uma autoconsciência metódica, que vincula ao conjunto de nossas experiências no mundo”30.

Partindo desse ponto, Gadamer questiona se a busca do método de fato garante a validade universal. Para tal, segundo Grondin31, Gadamer se orienta através da palestra do cientista natural Helmholz proferiu em 1892, em Heidelberg:

Segundo esta conferência, digna de ser lida ainda hoje, as ciências naturais caracterizam-se pelos métodos da indução lógica, que destaca regras e leis a partir do material recolhido. As ciências do espírito procedem de outra forma. Elas chegam, antes, aos seus conhecimentos por algo como um sentimento psicológico de tato. Helmholz fala aqui de uma “indução artística”, que brota de uma sensibilidade instintiva, ou tato, para o qual, toda via, não existem regras definidas32.

A teoria gadameriana relaciona-se com a teoria de Helmholz ao afirmar que as ciências dos espíritos muito mais relacionam-se com o tato do que com o emprego de métodos33.

Ademais, Grondin acrescenta: “Neste espírito, Verdade e método efetuará uma crítica fundamental à obsessão metodológica, revelada na preocupação pela cientificidade das ciências do espírito”34.

Quando escrevia sua obra, Gadamer enfrentou diversos questionamentos acerca das ciências do espírito. Navarro35 expõe que muitos críticos da teoria de Gadamer questionavam a respeito da uniformidade, regularidade e legalidade que se encontra na lógica dos métodos das ciências da natureza.

Gadamer rebatia essas críticas dizendo que mesmo essa ciência sendo exata, nem sempre ela era precisa; como exemplo temos a meteorologia, que, mesmo que trabalhe com métodos bem precisos, possui dados incompletos e inseguros. Em seu livro Verdade e método, Gadamer discorre:

Mesmo na ciência moral estaria em questão reconhecer uniformidade, regularidade e legalidade, que tornariam previsíveis os fenômenos e processo individuais. Também no âmbito dos fenômenos da natureza não é possível alcançar esse objetivo da mesma maneira, por toda a parte. Mas o motivo disso se encontra exclusivamente no fato de os dados em que se poderia reconhecer as uniformidades nem sempre serem suficientes. Embora a meteorologia trabalhe tão metodologicamente quanto a física, seus dados são mais incompletos, tornando mais inseguras suas previsões36.

Em Gadamer, não se fala da hermenêutica como uma doutrina com métodos, mas sim uma elevação das ciências do espírito para além de métodos, uma consciência que vincula todo o conjunto de nossas experiências no mundo.

Dessa maneira, Gadamer propõe a encontrar a verdade para além do método:

Não foi minha intenção desenvolver uma “doutrina da arte” do compreender, como pretendia ser a hermenêutica antiga. Não pretendia desenvolver um sistema de regras artificiais, que conseguissem descrever o procedimento metodológico das ciências do espírito, ou até guiá-lo. Minha intenção também não foi de investigar os fundamentos teoréticos do trabalho das ciências do espírito, a fim de transformar o conhecimento usual em conhecimento prático.[…] Minha intenção verdadeira, porém, foi e é uma intenção filosófica: O que está em questão não é o que nós fazemos, mas o que nós deveríamos fazer, mas o que, ultrapassando nosso querer e fazer, nos sobrevém, ou nos acontece37.

Lixa38 explica que Gadamer herda os seguintes elementos da teoria de Heidegger: a descoberta de que o horizonte do ser é o tempo, o que permitiu a superação da ausência de fundamento ontológico; o próximo elemento é a descoberta de Heidegger da pré-estrutura da compreensão, pois o intérprete deve manter-se atento; e o terceiro elemento da teoria de Heidegger que Gadamer se atenta é sua concepção de círculo hermenêutico.

Com relação ao primeiro ponto, a teoria gadameriana acrescenta a historicidade e a posição do ser no mundo com um elemento central. Para Gadamer, a hermenêutica ultrapassa o método, a tese central ultrapasse a obra em si. Lixa preconiza:

Heidegger, ao colocar o ser em relação de mundanidade, muda a concepção fenomenológica, já que a ontologia fundamental está firmemente baseada no próprio mundo, o que serve a Gadamer como ponto de partida para o que chama de “hermenêutica da facticidade”, que posteriormente será incorporada em sua “historicidade da compreensão”39.

Com Heidegger, há uma superação da metafísica; dessa maneira, o conceito de compreensão deixa de ser metódico para adquirir um caráter ôntico original da vida humana. Lixa completa: “Esta ruptura heideggeriana redimensiona o sentido da compreensão, e é exatamente este novo aspecto da hermenêutica da Gadamer busca desenvolver em seu trabalho”40.

Para Gadamer41 a hermenêutica da facticidade tem “sua finesse, na impossibilidade do ser em retroceder para trás da facticidade deste ser” sendo esta a alegação encontrada pela presença em seu projetar-se. Dessa maneira, a finitude histórica não é uma limitação, mas sim um princípio interpretativo, que para Lixa: “que conduz Gadamer a conceber a historicidade da compreensão como um princípio hermenêutico”42.

Em sua obra, Gadamer afirma que toda a compreensão é dotada de preconceito. Importa destacar que, para o filósofo, essa conotação negativa advenho com o iluminismo43. No iluminismo, havia um preconceito com qualquer tipo de intervenção, não valendo autoridade nenhuma, somente a razão.

Como herança de tal pensamento, a ciência moderna passou a desempenhar-se com afinco para que o intérprete possa se libertar do preconceito tradicionalmente cultivado, e assim ser capaz de diferenciar verdade de opinião44.

Para Gadamer, a opinião não é uma parte estranha para hermenêutica, mas algo que ajuda na construção da troca, permitindo o reconhecimento do que é familiar. Em Gadamer o preconceito é essencial: “mais que os nossos conceitos, são nossos preconceitos que perfazem nosso ser”45.

Além disso, Gadamer completa:

Os preconceitos não são necessariamente injustificados e errôneos, de modo a distorcer a verdade. Na realidade, o fato de os preconceitos, no sentido literal da palavra, constituírem a orientação prévia de toda nossa capacidade de experiência é constitutivo da historicidade de nossa existência. São antecipações da nossa abertura para o mundo, que se tornam condições para que possamos experimentar qualquer coisa, para que aquilo que nos vem ao encontro possa nos dizer algo46.

Ainda que para Gadamer o preconceito seja essencial para nossa abertura no mundo, ele esclarece que cabe justamente a hermenêutica o papel de diferenciar o preconceito que sejam obstáculos para a compreensão.

Entretanto, para que não ocorra altercações, desde o começo de sua obra Gadamer formula um aviso:

Uma pessoa que procura compreender um texto está preparada para que este lhe diga algo. Por isso uma mente preparada pela hermenêutica deve ser, desde o princípio, sensível à novidade do texto. Mas este tipo de sensibilidade não implica nem «neutralidade» na questão do objeto, nem a anulação da personalidade dessa pessoa, mas assimilação consciente dos significados prévios e dos preconceitos. O que importa é estar consciente da sua própria predisposição, para que o texto se possa apresentar em toda sua novidade e conseguir, assim, afirmar a sua própria verdade, por oposição aos nossos sentidos47.

Dessa maneira, com tais considerações, vincula-se compreensão e tradição. Gadamer afirmava que o compreender deve ser pensado menos como uma ação de subjetividade do que como um retroceder que penetra na questão da tradição.

Ademais, preconiza Bleicher:

A ideia de Razão absoluta ignora o facto de a Razão só se poder afirmar em condições históricas. Até a aplicação mais neutra dos métodos da ciência se rege por uma antecipação dos momentos da tradição na seleção do tópico de investigação, na sugestão de novas perguntas e no despertar do interesse pelo novo conhecimento. Cabe, por conseguinte, à hermenêutica filosófica realçar o momento histórico na compreensão do mundo e determinar a sua produtividade hermenêutica48.

Gadamer apresenta a conceituação de horizonte. Em Gadamer, horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto49.

Na hermenêutica, o horizonte é o questionamento sobre as questões colocadas pela tradição. Navarro50 declara que transferimos para o horizonte do outro, com o objetivo de compreender sua posição, entretanto é possível que suas opiniões se tornem compreensíveis em sua posição e horizonte.

Navarro ainda ressalta:

Durante a velha tradição hermenêutica, Rambach, dividia em três momentos: interpretação, compreensão e aplicação. No entanto, em um período pós-romântico, a interpretação e a compreensão fundem-se, mas o terceiro momento (aplicação) continua totalmente desassociado. Gadamer, no entanto, coloca a aplicação como sendo um momento integrante do processo hermenêutico, tão essencial quanto a compreensão e a interpretação. Assim, hermenêutica passa a ser um processo unitário que inclui a compreensão, a interpretação e a aplicação51.

A teoria gadameriana trata do terceiro elemento da teoria de Heidegger para a sua hermenêutica filosófica: a concepção de círculo hermenêutico. Para Lixa: “Gadamer explora a questão do círculo hermenêutico associada à pré-estrutura da compreensão heideggeriana enquanto realização da própria compreensão”52.

Nesse sentido, Bleicher disserta:

Gadamer baseia-se, simultaneamente, na exposição que Heidegger faz da pré-estrutura da compreensão e na tônica de Bultmann na compreensão prévia, na medida em que a primeira é a concretizada e a segunda é alargada na concepção de «preconceitos», que constituem um determinado «horizonte da compreensão»53.

Para Gadamer, a compreensão operacionalizada a partir da história é tomada como a compreensão do presente a partir dos preconceitos, que são transmitidos pelo passado. Ainda completa: “Na compreensão tornam-se operantes as vinculações do presente com o passado e suas possibilidades de futuro –a presença que se projeta para seu poder-ser sempre ‘sido’–”54.

A consciência histórica é uma objeção do novo ao antigo. Lixa assevera:

[…] O papel da consciência histórica crítica, como forma de permanente interrogação –à qual segundo Gadamer damos o nome de filosofia– que deve ser feita, não significa sempre decidir pelo novo, mas revelá-lo para mediar (processo compreensivo) o passado, presente e futuro55.

Tudo isso deve ser considerado de importância na hora da interpretação, e não apenas ter um reconhecimento.

Essa abertura à tradição e ao passado irá se manifestar, na construção teórica de Gadamer, por meio da dialética de pergunta e resposta. Trata-se de uma inerente negatividade da pergunta: saber que não saber. Isso porque perguntar é mais difícil que dar respostas. Aquele que pensa que sabe tudo não sabe perguntar. Dessa forma, perguntar quer dizer oferecer abertura56.

Dessa maneira, chega-se à dialética de pergunta e das respostas. À dialética de pergunta e resposta torna o texto como uma conversa, a cada resposta nova, uma nova pergunta, e nega-se a possibilidade de um esclarecimento total, pois cada pergunta abre para uma nova experiência. Fica incapaz a reprodução do sentido original, e de uma compreensão fechada, pois compreender sempre é um projetar de si mesmo.

A partir dos argumentos acerca da experiência hermenêutica enquanto relação recíproca e dialética de pergunta e resposta, a sua estrutura lógica permite o estabelecimento de uma conversação relação recíproca. Assim, Navarro57 destaca que para a teoria gadameriana a tarefa imposta à hermenêutica é a compreensão do meio desta conversação: a linguagem.

Nesse sentido, Lixa ensina:

Assim, a análise da linguagem adquire grande destaque no trabalho de Gadamer, basicamente tomada como o meio pelo qual se manifesta a experiência hermenêutica –o recurso-meio da conversação que revela o que somos para nós e para o outro– a condição de possibilidade existencial humana58.

Dessa forma, o problema da linguagem constitui o tema central da filosofia hermenêutica gadameriana. Essa atenção que Gadamer direciona para com linguagem, marca o momento em que ultrapassa as preocupações da hermenêutica existencial. Bleicher ressalta que: “ao invés de uma intervenção total da história universal e à luz da consciência de que uma medição é necessária à fusão dos horizontes, Gadamer desenvolve a teoria da universalidade da linguagem”59.

Em Gadamer, a tarefa da linguagem é como meio, processo, fundamento, onde é alcança-se o sentido pelo diálogo. Gadamer também tratou do problema da compreensão dos textos escritos enquanto experiência hermenêutica, para ele, a interpretação é como uma espécie de conversação entre o intérprete e o texto.

Com relação ao assunto, Lixa explica:

[…] É pelo intérprete que estas manifestações vitais são reconvertidas em signos com novo significado. Esta reconversão tem como meio a linguagem, através da qual se forma um elo comum entre o intérprete e o texto –pressuposto necessário para que o intérprete participe do sentido do texto–tal qual uma conversação comum. Não se trata, portanto, de mera adaptação, ou de reconstrução da gênese do texto, já que se encontra implícito, na interpretação, o horizonte do intérprete como possibilidade que se aciona para a apropriação do sentido60.

Para Gadamer, o papel da linguagem é que ela conduz a possibilidade de um horizonte comum entre o intérprete e o texto. Pertencer à linguagem para o Autor é uma expansão, uma abertura de horizonte.

Assim, Lixa completa:

Ao tratar a interpretação dos textos como experiência hermenêutica que culmina com a fusão de horizontes –o sentido do texto e o sentido do intérprete e de identificação de “intenção subjetiva” de um texto, mas na determinação de um horizonte de sentido a partir do qual ela se realiza e os preconceitos são manifestados–. Compreender um texto é operar uma mediação que tem início e fim no intérprete em sua circunstancialidade e finitude existencial61.

Dessa forma, a importância do estudo de Gadamer acerca do fenômeno da compreensão é essencial pois toma a questão da verdade e do método separadamente.

Nas palavras de Lixa: “O universo hermenêutico é o mundo de maneira aberta”62. A hermenêutica filosófica de Gadamer nasce como uma forma de superar a hermenêutica tradicional, assim, libertou o fenômeno hermenêutica em toda sua amplitude, pois a compreensão não depende mais da metodologia para validá-la. Dessa forma, a hermenêutica filosófica dimensiona o espaço e universo linguístico da finita existência humana que jamais se esgota.

A hermenêutica de Gadamer, apesar das críticas, de maneira transformadora estabeleceu a necessidade de problematizar a compreensão no âmbito das ciências sociais, sobretudo no Direito, onde um dos desafios colocados é enfrentar e dialogar.

4 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE GADAMER COMO FUNDAMENTO PARA AS CIDADES SUSTENTÁVEIS

A hermenêutica filosófica de Gadamer não há uma restrição a métodos científicos, mas sim a compreensão do direito e do papel exercido pelo indivíduo, assim, ela oferece a superação de paradigmas ambientais já existentes e evolui para a construção de um novo paradigma.

Evidencia-se na hermenêutica filosófica a importância do pré-conceitos no momento da compreensão. Aquele que compreende realiza um projetar, já coloca sua opinião prévia. Para compreender o direito ambiental, torna-se fundamental identificar alguns aspectos da pré-compreensão, seja quanto a interpretação, quando ao conteúdo. Especificamente no Direito ambiental, os operadores ainda estão atrelados a hábitos linguísticos e comportamentos reiterados.

Dessa forma, hermenêutica filosófica gadameriana propõe o reconhecimento desse senso comum e desmitificar a pré-compreensão. O saber ambiental não se limita ao aprendizado apenas das ciências ambientais, mas pressupõe que traga a questão do ser na história, um reconhecimento das disparidades.

Ocorre que as cidades contemporâneas, de oportunidades e facilidades, de avanços e cultura, cedeu à separação dos espaços, direitos e riquezas. Chegamos a um estado em que nossas ações comprometem nosso próprio destino.

A própria história humana é evidencia a relação entre a ausência de educação e conscientização com os desastres. A superação do atual quadro de degradação e desconsideração do meio urbano passa, essencialmente, por alterações profundas na compreensão e conduta humanas.

Conforme Navarro, se o indivíduo tem uma visão mais conservadora de sustentabilidade, pode ser possível que para este a realização de atividades econômicas poluidoras sejam possíveis face à ponderação de outros interesses63.

Mesmo que as cidades sustentáveis sejam uma realidade possível e presente, o direito ainda lida com os problemas ambientais nos centros urbanos de uma forma instrumental. Disso nasce a necessidade de um saber jurídico ambiental orientado pela pluralidade de possibilidades, o que proporciona a hermenêutica filosófica.

A chave para uma nova perspectiva do direito ambiental é a compreensão da existência de uma crise ecológica. Não basta o modelo cienticista para oferecer respostas adequadas ao direito ambiental ou a sua crise, é necessário a comunicação entre as diversas instâncias como a ética, a política, a ciência e a filosofia para nascer soluções práticas64.

Com relação a linguagem e o direito ambiental, Navarro comenta:

A hermenêutica filosófica propõe uma superação na visão segundo a qual a linguagem é uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e objeto, pois passa-se a entender a linguagem como elemento universal constitutivo tanto do sujeito como do próprio objeto65.

Dessa forma se caracteriza a virada linguística, onde deixa-se de compreender o mundo por meio da linguagem e passa-se a compreender a própria linguagem.

Para Gadamer, a existência do homem no mundo está constituída linguisticamente, de forma que é a linguagem que introduz o homem em uma determinada relação e um determinado comportamento com relação ao mundo. Assim, o mundo somente é mundo na medida em que vem à linguagem, ao mesmo tempo que a linguagem só tem sua verdadeira existência no fato de que nela se representa o mundo66.

A linguagem possui pluralidade de sentidos. A compreensão das leis ambientais ocorre através da compreensão de linguagem ambiental, cuja característica é a busca do sentido apenas no caso concreto. Para Navarro: “Não existe um único sentido das leis ambientais a ser apreendido, mas esse sentido será construído com a base na pré-compreensão do intérprete”67.

O que significa que para o enfrentamento dos problemas socioambientais dentro de um processo contínuo de planejamento urbano, deve-se considerar cada contexto sociocultural, político, econômico e ecológico.

Assim, a reciprocidade entre direito e um pertencer, porquanto desenvolver-se e usufruir de uma cidade plenamente habitável não é apenas direito, é dever basilar do indivíduo, da sociedade, dos empreendedores e do Estado.

Se realizarmos um exercício de se transferir para o horizonte do outro, e compreender sua posição, é possível também compreender suas opiniões. Para Gadamer:

Compreender é sempre o processo de fusão de horizontes [presente e passado] presumivelmente essa tensão em uma assimilação ingênua, mas em desenvolvê-la conscientemente. Esta é a razão por que o comportamento hermenêutico está obrigado a projetar um horizonte que se distinga do presente68.

Para análise dos horizontes, é crucial o estudo do momento em que as leis foram promulgadas, ou seja, não basta conceber um modelo utópico de cidades sustentáveis, sem conhecer o contexto geral daquele espaço de aplicação.

Embora o ordenamento brasileiro não sofra de carência de instrumentos técnicos e jurídicos voltados à gestão urbana, conforme verificou-se, há profunda ineficiência na sua aplicação, resultando em flagrante efeito social dos mesmos.

Sendo o direito à cidade a expressão dos direitos que edificam a cidadania contemporânea, a dignidade humana, a liberdade, a igualdade, a justiça social, a sustentabilidade, cabe a construção de novos paradigmas que sejam capazes de efetivar a justiça social, da inclusão social e do desenvolvimento sustentável.

Bem além da preocupação com a mera reprodução do sentido das normas de Direito ambiental, ambiciona-se uma nova visão ambiental, a abertura do direito ao diálogo e a assimilação das disparidades, para nascer uma verdadeira proteção ambiental.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os conflitos socioambientais, reflexos do processo de urbanização, estão expostos no convívio urbano e são agravados pela ineficiência da aplicação do ordenamento vigente. O que se busca é um modelo econômico, político, social e cultural que mantenha um meio ambiente equilibrado e que satisfaça as necessidades das populações atuais sem, no entanto, comprometer as futuras gerações.

Para Hans-Georg Gadamer importa relacionar-se a todo momento com a história; assim, iniciar o trabalho com a delimitação dos momentos históricos ambientais é fundamental para o ser humano tomar partido, ter consciência e a partir daí ocorrer o verdadeiro mecanismo de proteção.

Assim, sugere uma mudança para uma cidade que pensa e cuida das pessoas e as pessoas que pensam e cuidam da cidade. Uma construção que é coletiva, uma vez que a cidade não é um ente separado da sociedade que a produz.

O indivíduo é um ator social incluído dentro de uma historicidade, não basta uma simples interpretação do texto, mas na situação em questão havia uma busca pelo projetar de toda uma sociedade.

Ainda, é necessário pensar em meio urbano de maneira inter e multidisciplinar, buscando respostas não apenas pontuais, isoladas, mas conjuntas e diversificadas. Nesse sentido, a hermenêutica filosófica que rompeu com os alicerces da hermenêutica clássica se propõe a uma virada no campo interpretativo e a construção de um novo saber ambiental.

É evidente a necessidade de transformações de paradigmas existentes no que se refere a conquista de cidades sustentáveis, paradigmas que possibilitem novas concepções, e recepcionem os problemas ambientais reais.

Dessa maneira, com a hermenêutica filosófica de Gadamer, destaca-se a tarefa da linguagem é como meio, processo, fundamento, onde é alcança-se o sentido pelo diálogo. A linguagem é uma expansão, abertura de horizontes.

No modelo vigente, o que se observa é a valorização de técnicas científicas, com a elevação de fatores ditos “técnicos”, fechados, e uma desconsideração dos chamados sociais.

Com toda convicção, pode-se afirmar que mesmo a Constituição Federal de 1988 sendo um dos sistemas mais abrangentes e atuais do mundo no que se refere ao meio ambiente, jamais firmará fatores de Justiça ambiental sem a transformação de um saber ambiental.

O campo de estudo das Cidades Sustentáveis é um espaço extraordinário para o desenvolvimento da hermenêutica filosófica de Gadamer, uma vez que nela se pressupõe a questão do ser no tempo, na história e um reconhecimento das disparidades. Assim, a Justiça ambiental ganha sentido nas mãos do indivíduo.

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Notas

1 Trabajo realizado en el marco del proyecto de investigación: Instrumentos jurídicos para la lucha contra la despoblación en el ámbito rural (DESPORU), Ref.: RTI2018-099804-A-100. FEDER/Ministerio de Ciencia, Innovación y Universidades, Agencia Estatal de Investigación. Gobierno de España.

2 Mitscherlich, 1972.

3 Navarro, 2015.

4 Mitscherlich, 1972: 1.

5 Granziera, 2015: 22.

6 Granziera, 2015: 22.

7 Silva, 2012: 20.

8 Silva, 2012: 20.

9 Silva, 2012: 21.

10 Silva, 2012: 24.

11 Silva, 2012: 24.

12 Silva, 2012: 24-25.

13 Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1992.

14 Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1992.

15 Schonardie, 2012: 252.

16 Saule Junior, 2007: 50.

17 Cenci, 2010.

18 Saule Junior, 2001: 36.

19 Lei n. 10.257, 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências (Disponível em: www.planalto.gov.br./ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. 13-06-2019).

20 Saule Junior, 2007: 65.

21 Mitscherlich, 1972.

22 Gadamer, 2011: 29.

23 Navarro, 2015: 152.

24 Bleicher, 2002: 153.

25 Navarro, 2015: 152. Gadamer, 2004-2011: 14.

26 Gadamer, 2004-2011: 42.

27 Grondin, 1999: 179.

28 Grondin, 1999: 180.

29 Navarro, 2015: 152.

30 Lixa, 2003: 63.

31 Grondin, 1999: 181.

32 Grondin, 1999: 182.

33 Grondin, 1999: 181-182.

34 Grondin, 1999: 183.

35 Navarro, 2015: 155.

36 Gadamer, 2011: 37-38.

37 Gadamer, 2011: 14.

38 Lixa, 2003: 64.

39 Lixa, 2003: 64.

40 Lixa, 2003: 64.

41 Gadamer aput Lixa, 2003.

42 Lixa, 2003: 65.

43 Bleicher, 2002: 154.

44 Lixa, 2003: 66.

45 Gadamer, 2004-2011: 261.

46 Gadamer, 2004-2011: 261.

47 Gadamer aput Bleicher, 2002.

48 Bleicher, 2002: 155.

49 Navarro, 2015: 157.

50 Navarro, 2015: 158.

51 Navarro, 2015: 158.

52 Lixa, 2003: 67.

53 Bleicher, 2002: 153.

54 Lixa, 2003: 70.

55 Lixa, 2003: 71.

56 Navarro, 2015: 161.

57 Navarro, 2015: 162.

58 Lixa, 2003: 84-85.

59 Bleicher, 2002: 162.

60 Lixa, 2003: 85.

61 Lixa, 2003: 86.

62 Lixa, 2003: 87.

63 Navarro, 2015: 195.

64 Navarro, 2015: 200.

65 Navarro, 2015: 202.

66 Navarro, 2015: 202.

67 Navarro, 2015: 203.

68 Gadamer, 2011: 474.