Revista Administración & Cidadanía, EGAP
Vol. 18_núm. 2_2023 | pp. 141-152
Santiago de Compostela, 2023
https://doi.org/10.36402/ac.v18i2.5197
© Betieli da Rosa Sauzem Machado
© Ricardo Hermany
ISSN-L: 1887-0279 | ISSN: 1887-0287
Recebido: 15/02/2024 | Aceito:15/02/2024
Editado sob licença Creative Commons Atribution 4.0 International License
The role of green IPTU extrafiscality for local social empowerment and the formation of energetic communities in Brazil
Betieli da Rosa Sauzem Machado3
Doutoranda em Direito Programa de Pós-Graduação em Direito
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC
https://orcid.org/0000-0003-3489-6741
Ricardo Hermany4
Professor da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC
https://orcid.org/0000-0002-8520-9430
Resumo: O presente estudo visa a investigar como a extrafiscalidade do “IPTU verde” pode potencialmente contribuir para o empoderamento social no Brasil, com ênfase na formação de comunidades energéticas. A questão proposta aqui é a seguinte: como a extrafiscalidade do “IPTU verde” pode viabilizar o empoderamento social local no contexto brasileiro e a formação de comunidades energéticas? Os métodos utilizados na pesquisa são o de procedimento hermenêutico e o de abordagem dedutiva, além da técnica de pesquisa bibliográfica. Os objetivos específicos são dois: o primeiro analisa os municípios no contexto do federalismo brasileiro e as bases teóricas que fundamentam a extrafiscalidade nas formas de arrecadação tributária local; e o segundo estuda a extrafiscalidade do “IPTU verde” como viabilizadora do empoderamento social local. Quanto a esse último aspecto, buscamos exemplos de casos de implementação em diferentes municípios brasileiros, bem como os resultados observados. Na Conclusão, destacamos que o “IPTU verde” tende a incentivar práticas e construções sustentáveis, contribuindo, consequentemente, não só para a formação de comunidades energéticas e para o empoderamento social local, a partir do senso de pertencimento, como também promovendo benefícios fiscais para os proprietários que adotam medidas e tecnologias ecologicamente sustentáveis em seus imóveis. Estas podem incluir iniciativas relacionadas à instalação de sistemas de captação de água da chuva e de painéis solares –utilização de energias renováveis–, entre outras ações que visam à preservação ambiental e à eficiência energética.
Palavras-chave: Comunidades energéticas; empoderamento social local; energia solar; extrafiscalidade; IPTU verde.
Resumen: El presente estudio propone investigar cómo la extrafiscalidad del «IPTU verde» puede contribuir potencialmente al empoderamiento social en Brasil, con énfasis en la formación de comunidades energéticas. La pregunta aquí propuesta es la siguiente: ¿cómo puede la extrafiscalidad del «IPTU verde» permitir el empoderamiento social local en el contexto brasileño y la formación de comunidades energéticas? Los métodos utilizados en la investigación son procedimientos hermenéuticos y enfoques deductivos, además de la técnica de investigación bibliográfica. Los objetivos específicos son dos: el primero analiza los municipios en el contexto del federalismo brasileño y las bases teóricas que sustentan la extrafiscalidad en las formas de recaudación de impuestos locales; y el segundo estudia la extrafiscalidad del «IPTU verde» como facilitadora del empoderamiento social local. Respecto a este último aspecto, buscamos ejemplos de casos de implementación en diferentes municipios brasileños, así como los resultados observados. En la Conclusión, destacamos que el «IPTU verde» tiende a fomentar prácticas y construcciones sostenibles, lo que contribuye en consecuencia no sólo a la formación de comunidades energéticas y al empoderamiento social local, basado en un sentido de pertenencia, sino también promoviendo beneficios fiscales para los propietarios que adopten medidas y tecnologías ecológicamente sostenibles en sus propiedades. Estas podrán incluir iniciativas relacionadas con la instalación de sistemas de captación de aguas pluviales y paneles solares —uso de energías renovables— entre otras acciones destinadas a la preservación ambiental y la eficiencia energética.
Palabras clave: Comunidades energéticas; empoderamiento social local; energía solar; extrafiscalidad; IPTU verde.
Abstract: This study proposes to investigate how the extra-fiscality of “green IPTU” [Urban Building and Land Tax] can potentially contribute to social empowerment in Brazil, with an emphasis on the formation of energetic communities. The question proposed here is the following: how can the extra-fiscality of “green IPTU” enable local social empowerment in the Brazilian context and the formation of energetic communities? The methods used in the research are hermeneutic procedures and deductive approaches, in addition to the bibliographical research technique. The specific objectives are twofold: the first analyzes municipalities in the context of Brazilian federalism and the theoretical bases that underlie extra-fiscality in different forms of local tax collection; and the second studies the extra-fiscality of “green IPTU” as a facilitator of local social empowerment. Regarding the latter, we looked for examples of implementation cases in different Brazilian municipalities, as well as the results observed. In the Conclusion, we highlight that “green IPTU” tends to foster sustainable practices and constructions, thus contributing not only to the formation of energetic communities and local social empowerment, based on a sense of belonging, but also promoting tax benefits for property owners who adopt ecologically sustainable measures and technologies in their properties. These may include initiatives related to the installation of rainwater collection systems and solar panels – the use of renewable energy – among other action aimed at environmental preservation and energy efficiency.
Key words: Energetic communities; local social empowerment; solar energy; extra-taxation; green IPTU.
Sumario: 1 Introdução. 2 Os municípios no federalismo brasileiro e as formas de arrecadação tributária na esfera local. 3 O caráter extrafiscal do IPTU verde e o empoderamento social local: exemplos de implementação e resultados observados. 4 Conclusão. 5 Referências.
1 INTRODUÇÃO
A complexidade das demandas contemporâneas associadas ao desenvolvimento urbano e à preservação ambiental tem impulsionado a busca por instrumentos de políticas públicas capazes de reconciliar essas esferas aparentemente antagônicas. Dessa forma, a busca por soluções sustentáveis e ambientalmente responsáveis tem se tornado uma prioridade global em face dos desafios iminentes associados às mudanças climáticas e ao esgotamento de recursos naturais.
No contexto brasileiro, a temática da sustentabilidade urbana surge como espaço crítico de intervenção, evidenciando a necessidade de estratégias que promovam não apenas a eficiência energética, mas também o empoderamento social local. Nesse cenário, o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) verde tende a emergir como uma ferramenta potencialmente significativa, adotando uma abordagem extrafiscal para estimular práticas ambientais responsáveis.
O IPTU verde apresenta-se, além disso, como uma expressão inovadora dessa dinâmica, transcendendo sua tradicional natureza tributária para se configurar como um mecanismo extrafiscal destinado à promoção da sustentabilidade e ao estímulo do empoderamento social local. O presente estudo se propõe a investigar como a extrafiscalidade do “IPTU verde” pode potencialmente contribuir para o empoderamento social no Brasil, com foco específico na formação de comunidades energéticas.
A partir dessas premissas, colocamos a seguinte questão: como a extrafiscalidade do “IPTU verde” pode viabilizar o empoderamento social local no contexto brasileiro e a formação de comunidades energéticas? Partimos da hipótese de que a implementação efetiva da extrafiscalidade do “IPTU verde” pode desencadear processos de empoderamento social local, capacitando os cidadãos a desempenhar um papel mais ativo na formação e na gestão de comunidades energéticas. Em outras palavras, os incentivos fiscais relacionados à adoção de práticas sustentáveis podem catalisar não apenas transformações ambientais, mas também o engajamento participativo da sociedade –a partir do senso de pertencimento no âmbito municipal– na busca por soluções energéticas inovadoras e autossustentáveis.
A pesquisa também se justifica em razão de sua relevância, configurada na elaboração de estratégias que promovam a eficiência energética e a capacitação dos cidadãos como agentes ativos na condução de mudanças socioambientais em suas localidades. A compreensão dos mecanismos pelos quais a extrafiscalidade do “IPTU verde” pode influenciar o empoderamento social local é essencial para orientar políticas urbanas mais eficazes e socialmente inclusivas.
O método utilizado na pesquisa é o do procedimento hermenêutico, que permite a correta interpretação dos textos e sistemas analisados. Já o método de abordagem aplicado é o dedutivo, visto que partimos de uma análise de dados gerais –premissa maior– para dados específicos –premissa menor– até a conclusão. Quanto à técnica de pesquisa, recorremos à bibliográfica, por meio de documentação indireta, utilizando obras, periódicos, dissertações, teses e legislação acerca da temática.
A pesquisa apresenta dois objetivos específicos. No primeiro, analisamos os municípios no contexto do federalismo brasileiro e as bases teóricas que fundamentam a extrafiscalidade nas formas de arrecadação tributária local. No segundo, estudamos a extrafiscalidade do “IPTU verde” como viabilizadora do empoderamento social local, buscando, neste ponto, exemplos de casos de implementação em diferentes municípios e os resultados observados.
2 OS MUNICÍPIOS NO FEDERALISMO BRASILEIRO E AS FORMAS DE ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA NA ESFERA LOCAL
No contexto brasileiro, o federalismo configura-se como um sistema de organização política que distribui poder entre os diferentes níveis de governo. O artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, prevê a união indissolúvel entre estados-membros, municípios e Distrito Federal, constituindo, assim, o Estado Democrático de Direito5. Desse modo, ao elaborar a divisão espacial de competências entre os entes federados, a Constituição adotou o federalismo cooperativo, estruturado em três níveis de governo. Conforme preceituado no caput do artigo 18, os entes federados detêm autonomia política, administrativa e financeira, sendo delineadas as atribuições de cada nível.
Além disso, a Constituição de 1988 introduziu inovações importantes, aumentando a alocação de recursos para as esferas subnacionais –estados-membros e municípios–, expandindo direitos sociais fundamentais, tais como saúde e educação, e aprimorando o controle institucional e social sobre os três níveis de governo. Assim, ao contrário de muitos outros modelos de federações, o federalismo brasileiro adota um sistema trino (três níveis de governo), integrando os municípios como entidades federativas, o que remete a uma tradição histórica de autonomia municipal e a um limitado controle dos estados-membros em questões de ordem local. Por conseguinte, os três níveis de governo dispõem de seus próprios Poderes Legislativos e Executivos, enquanto os níveis federal e estadual possuem, também, seus próprios Poderes Judiciários6.
O modelo federalista, conforme definido no artigo 18 da Constituição, posiciona os entes federativos –União, estados-membros, Distrito Federal e municípios– em um mesmo patamar hierárquico, ressaltando-se, contudo, as distintas competências atribuídas pelo texto constitucional. Outrossim, evidencia-se que a autonomia política e administrativa, consagrada neste texto, traduz-se na descentralização do poder político e organizacional, conferindo a cada ente federativo a prerrogativa de eleger seus governantes, moldar a sua forma de organização, e ter as suas próprias fontes de receitas e prioridades, sem a interferência do poder central.
Nesse sentido, a descentralização de competências e encargos, embora simbolize um avanço na autonomia, implica, invariavelmente, uma maior necessidade de recursos, uma vez que cada ente assume encargos constitucionais específicos e as suas respectivas responsabilidades de financiamento. Dessa maneira, além da autonomia política e administrativa, a autonomia financeira se configura como um dos pilares fundamentais do modelo federativo. Vale salientar que sua ausência implicaria necessariamente em uma dependência dos entes federativos, especialmente os subnacionais, em relação ao financiamento provido pelo poder central7.
Ademais, a Constituição de 1988 delineou de maneira distinta as esferas de competências, estabelecendo um modelo singular nos artigos 21 ao 30, que constituem a “coluna vertebral” da divisão de responsabilidades entre os entes federativos8. Esses dispositivos delineiam as competências da União, conforme expressadas nos artigos 21 e 22; as atribuídas aos municípios encontram-se nos artigos 29 e 30. Aos estados-membros são conferidas competências residuais, dispostas no artigo 25, e a competência para criar municípios, prevista no artigo 18, §4°. A Constituição também delimita áreas de competências legislativas concorrentes, descritas no artigo 24, e competências administrativas comuns, nos termos do artigo 23. Como resultado, os estados-membros, o Distrito Federal e os municípios devem cooperar com a União na prestação de serviços em áreas de cunho social, observadas as diretrizes constitucionais.
Nessa perspectiva, a autonomia financeira se apresenta como a faceta mais desafiadora a ser alcançada pelos estados-membros e municípios. Esse desafio é permeado por diversos fatores, entre os quais a ausência de fontes próprias capazes de assegurar a execução e o financiamento das atribuições decorrentes da descentralização. Ademais, a estrutura tributária, estabelecida pela Constituição para a distribuição dos recursos, acentua as disparidades regionais, evidenciando as dificuldades dos estados-membros e municípios para suportar financeiramente, de maneira sustentável, as responsabilidades inerentes à descentralização.
A distribuição de competências fiscais e administrativas entre os níveis de governo suscita diversas perspectivas no âmbito do federalismo. Por um lado, é possível sustentar que a descentralização fiscal representa uma condição necessária, porém não suficiente, para o federalismo. Consequentemente, a ausência de recursos financeiros próprios estabelece uma dinâmica de dependência dos entes em relação àqueles que controlam esses recursos, geralmente o centro. Por outro lado, observa-se que a descentralização administrativa não se configura como condição necessária para o federalismo, uma vez que a falta de divisão clara de competências governamentais entre os entes tende a resultar em duplicidade e lacunas de atuação dos governos, mas não necessariamente em uma ausência de autonomia9.
Com relação à autonomia financeira, os artigos 145 e 162 da Constituição delineiam a distribuição de competências tributárias entre os entes federativos, enquanto os artigos dos números 21 ao 32 enumeram os encargos e serviços públicos pelos quais cada ente é responsável. Esses artigos indicam ainda os mecanismos de partilha das receitas tributárias arrecadadas, como é o caso do Fundo de Participação dos Municípios, estados-membros e Distrito Federal, bem como os Fundos Constitucionais destinados ao incentivo do desenvolvimento regional. Nessa perspectiva, os entes federativos têm competência, por meio da norma tributária, para arrecadar e fiscalizar tributos, dentro dos limites estabelecidos pela Constituição.
A análise da composição da receita dos entes federativos permite identificar três recursos principais: os recursos provenientes da arrecadação própria, conforme às competências tributárias constitucionais inerentes a cada ente; os recursos vinculados a transferências obrigatórias, delineados tanto na Constituição quanto em outras legislações, entre as quais as que tratam do Fundo de Participação de Municípios (FPM) e do Fundo de Participação dos Estados (FPE); e as chamadas transferências voluntárias, caracterizadas, no contexto da União, como a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente federativo, em caráter de cooperação assistencial ou auxílio financeiro, desvinculados de determinações constitucionais, legais ou os destinados ao Sistema Único de Saúde.
Assim, dentre as autonomias conferidas aos municípios, merece destaque a autonomia financeira, que se manifesta na capacidade dos entes locais de instituir e arrecadar tributos próprios, aplicando esses recursos sem a interferência dos outros entes federativos. Nesse contexto, a Constituição de 1988 estipulou que os municípios são dotados de fontes de recursos, conforme delineado nos artigos 145, 149, § 1º e 156, além de receberem aportes arrecadatórios de outros entes federados, em conformidade com os artigos 158 e 153, § 5º, inciso II, e o Fundo de Participação, conforme prescrito no artigo 15910.
A Constituição Federal de 1988 atribui ainda aos municípios, especificamente no artigo 156, a responsabilidade pela instituição de impostos e pela arrecadação de recursos fundamentais para o financiamento de serviços públicos essenciais e para o fomento do desenvolvimento local. Os municípios dispõem, dessa maneira, de diversas fontes de arrecadação, sendo o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) uma das principais, incidindo sobre serviços como turismo, transporte e comunicação. Adicionalmente, o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) figura como uma fonte expressiva de receita municipal, fundamentando-se na propriedade de imóveis. Outras fontes incluem o Fundo de Participação dos Municípios (FPM), uma transferência constitucional da União, e os recursos provenientes de convênios, doações e royalties.
3 O CARÁTER EXTRAFISCAL DO IPTU VERDE E O EMPODERAMENTO SOCIAL LOCAL: EXEMPLOS DE IMPLEMENTAÇÃO E RESULTADOS OBSERVADOS
O Direito Tributário, que examina os tributos fiscais e seus contornos, estabelece uma conexão intrínseca com o Direito Econômico, sempre que a política tributária passa a exercer influência na seara econômica. A modalidade por intermédio da qual a política tributária intervém na política econômica é denominada extrafiscalidade. Por exemplo, ao buscar estimular determinado setor da economia, o governo pode optar por reduzir as alíquotas dos impostos incidentes, promovendo, assim, incentivos específicos a determinadas atividades econômicas11. Observa-se, portanto, que a tributação pode impactar situações ou operações de maneira a influenciar as decisões dos agentes econômicos, que podem se organizar de modo a evitar a configuração do fato gerador e, por conseguinte, evitar a incidência tributária. Em outras palavras, esse efeito é reconhecido como extrafiscal.
Nesse contexto, a extrafiscalidade se caracteriza como um tributo e tem finalidade extrafiscal quando seus efeitos constituem não apenas um resultado secundário da tributação, mas também seu resultado primário, intrinsicamente almejado pelo legislador, que utiliza o tributo como instrumento para dissuadir ou fomentar determinados comportamentos12. Os objetivos da extrafiscalidade podem ser distintos, intervindo na economia privada, para estimular atividades, desencorajar o consumo de bens, induzir a utilização da propriedade conforme sua função social e impactar na economia.
O IPTU também adota uma natureza extrafiscal quando o Estado busca coibir ou incentivar determinadas condutas por parte do contribuinte. Nesse cenário, a função arrecadatória do tributo deixa de predominar, e destaca-se o impacto econômico gerado pela política tributária. Nesse sentido, para que o IPTU seja qualificado como tributo extrafiscal, sua finalidade principal não deve restringir-se à arrecadação financeira, mas sim ao estímulo ou desestímulo de comportamentos específicos, tornando-se, com isso, um instrumento de direcionamento social ou econômico.
Nesse sentido, os municípios têm a prerrogativa de conceder descontos ou isenções no IPTU a proprietários que adotem práticas sustentáveis em seus imóveis, como a implementação de sistemas de captação de água da chuva, a utilização de energias renováveis, a criação de áreas verdes, adaptações de acessibilidade, entre outras medidas voltadas à preservação ambiental. Essa abordagem pode contribuir significativamente para construção de cidades mais sustentáveis, justas e eficientes. Importa ressaltar que as estratégias de extrafiscalidade podem variar conforme a legislação municipal e as políticas específicas adotadas por cada localidade.
Nessa perspectiva, a prática da extrafiscalidade no IPTU, voltada para o estímulo à sustentabilidade –conhecida como “IPTU verde” e também como “IPTU ecológico” e “IPTU sustentável”, entre outras nomenclaturas–, é uma política pública que visa a promover construções mais sustentáveis e inclusivas, concedendo descontos no IPTU aos contribuintes que adotam medidas socioambientais em seus imóveis. Desse modo, o “IPTU verde” está alinhado aos princípios de sustentabilidade previstos na Constituição Federal, especialmente no artigo 225, o qual estipula que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, visto como um bem de uso comum da população e essencial a uma qualidade de vida saudável, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Por sua vez, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001), em seu artigo 2º, inciso I, reitera a garantia ao direito a cidades sustentáveis e ao saneamento ambiental. O referido artigo prevê que a política urbana tem como escopo coordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, por meio de diretrizes gerais, destacando, no inciso I, a garantia do direito a cidades sustentáveis. Este direito abrange a terra urbana, a moradia, o saneamento ambiental, a infraestrutura urbana, o transporte e os serviços públicos, o trabalho e o lazer, com vistas a atender às gerações presentes e futuras.
O “IPTU verde”, por derivar de legislação municipal, apresenta variações entre os diferentes municípios, uma vez que cada ente local pode estabelecer suas próprias normas e critérios. Essas variações incluem a concessão de descontos ou incentivos fiscais com percentuais diversos, prazos variados para a validade dos descontos, critérios específicos relacionados a práticas socioambientais elegíveis, e os procedimentos e prazos para os contribuintes solicitarem a adesão ao programa.
Dessa forma, os critérios e requisitos para a obtenção do desconto no “IPTU verde” dependem da legislação específica de cada município. As exigências também podem variar. Em alguns casos incluem a necessidade de cadastro no ano anterior à vigência do desconto, ao passo que em outros a necessidade é de poucos meses antes, requerendo-se, ainda, apresentar a documentação exigida. Vejamos como essa realidade é explicitada em alguns municípios brasileiros, conforme a tabela abaixo:
Tabela 1
Estado-membro |
Município |
Nº da Lei |
Prática adotada no “IPTU verde” |
Bahia |
Salvador |
Decreto nº 36.288/2022 |
O programa funciona por meio de uma pontuação, baseada nas ações sustentáveis adotadas, relacionadas à gestão sustentável das águas, à eficiência e às alternativas energéticas, ao projeto sustentável, à qualidade urbana, ao verde urbano, contribuições para adaptação baseadas em ecossistemas (AbE), à gestão de resíduos e bonificações para projetos com requerimentos para certificações. |
Minas Gerais |
Betim |
Lei nº 6.223/2017 |
Benefícios fiscais para propriedades que adotam práticas sustentáveis, como a instalação de sistemas de aquecimento solar e coleta seletiva de resíduos. |
Rio Grande do Sul |
Porto Alegre |
Lei Complementar nº 974/2023 |
Políticas de incentivo à sustentabilidade, incluindo a possibilidade de descontos no IPTU para imóveis que investem em tecnologias sustentáveis e eficiência energética. |
Santa Cruz do Sul |
Lei Complementar nº 745/2019 |
Programa “Santa Cruz solar” com regras de incentivo fiscal para a adoção de energia solar no âmbito municipal. |
|
Santa Catarina |
Balneário Camboriú |
Lei nº 4.303/2019 |
As práticas que geram o desconto são o uso de sistemas de captação e reuso de água, sistema de aquecimento hidráulico solar, construção com materiais sustentáveis, o uso de telhado verde e de painéis fotovoltaicos. |
São Paulo |
Guarulhos |
Lei n.º 6.793/2010 |
A política de incentivos está voltada para a utilização de um sistema de captação de água da chuva, a instalação de telhado verde, entre outras práticas. |
Fonte: Elaboração própria, a partir das legislações municipais.
É relevante destacar, ainda, que para além das disposições presentes nas legislações municipais acerca da temática, em dezembro de 2022 o Senado Federal aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 13/2019, tendo em vista incentivar a adoção de fontes de energia limpa e, concomitantemente, reduzir a tributação imposta ao contribuinte. Essa PEC propõe a implementação de alíquotas diferenciadas no âmbito federal, estando o projeto, até o momento, em processo de tramitação na Câmara dos Deputados.
No contexto do fortalecimento do poder local e da aproximação da tomada de decisões e do exercício do poder ao local de prestação do serviço público, vale ainda destacar a aplicação do princípio da subsidiariedade, especificamente em sua perspectiva administrativa interna. Esse princípio relaciona-se à divisão de competências entre os entes federativos e está intrinsecamente vinculado à ideia do federalismo, visando assegurar que as decisões necessárias não se afastem da realidade local, ocorrendo o distanciamento apenas em situações de absoluta impossibilidade de atuação de maneira subsidiária. Em síntese, o princípio da subsidiariedade implica que as decisões se distanciem do âmbito local somente quando não for viável processá-las dessa forma, sendo então transferidas para o ente federado mais distante13.
Nessa perspectiva, o esforço em articular a subsidiariedade, como estratégia para (re)organização de competências e relação entre os cidadãos e o poder público, tende a contribuir para a valorização do espaço local e para a efetivação de sua autonomia, incluindo a alocação de recursos compatíveis com as demandas decorrentes do acréscimo de atribuições. A democratização das decisões públicas, pautada na igualdade entre os cidadãos, fortalece o controle social sobre a gestão pública, criando um ambiente menos suscetível às pretensões oligárquicas regionais14.
No âmbito municipal, é inquestionável a relevância de medidas voltadas à promoção do meio ambiente, dada a evidente vinculação local e a proximidade com o meio ambiente. Isso decorre do fato de que as normas de ordem pública e interesse social, que passam a regular o uso da propriedade nas cidades, deixam de ter caráter unicamente individual. Adquirem, dessa maneira, uma natureza metaindividual, uma vez que uso da propriedade, conforme o artigo 1º, parágrafo único, do Estatuto da Cidade, passa a ser regulado em prol do bem coletivo, da segurança, do bem-estar dos cidadãos e do equilíbrio ambiental15.
Desse modo, em tal cenário é delineada uma transformação paradigmática, visto que a propriedade urbana transcende a mera caracterização como imóvel localizado na zona urbana, passando a desempenhar uma função ambiental no contexto da sustentabilidade e da dignidade da pessoa humana. Outrossim, a extrafiscalidade do “IPTU verde” manifesta-se como instrumento aplicado para reduzir impactos ambientais. Além de apresentar os benefícios derivados do envolvimento e da participação social –caracterizados como empoderamento social local–, esse mecanismo promove uma transformação cultural positiva, sedimentando a cooperação democrática entre os cidadãos e o poder público.
Cabe reiterar, ainda, que os sistemas fotovoltaicos, responsáveis pela transformação da luz solar em energia elétrica limpa, constituem uma das soluções sustentáveis mais amplamente aceitas e adotadas nas diversas municipalidades que implementam o “IPTU verde”. Essa abordagem não apenas proporciona ganhos financeiros por meio da adoção desta tecnologia, que contribui para a economia e a redução das despesas com energia elétrica para muitos consumidores no Brasil, como também destaca que o envolvimento do cidadão pode desempenhar um papel essencial na transição energética nas comunidades locais, propiciando, consequentemente, a formação de comunidades energéticas.
4 CONCLUSÃO
A pesquisa buscou responder à seguinte questão: como a extrafiscalidade do “IPTU verde” pode viabilizar o empoderamento social local no contexto brasileiro e para formação de comunidades energéticas? Para responde-la, a pesquisa foi dividida em dois momentos. No primeiro, analisou-se os municípios no contexto do federalismo brasileiro e as bases teóricas que fundamentam a extrafiscalidade nas formas de arrecadação tributária local. Já no segundo, estudou-se a extrafiscalidade do “IPTU verde” como viabilizadora do empoderamento social local, sendo que nesse quesito buscou-se exemplos de casos de implementação em diferentes municípios brasileiros e os resultados observados.
Ficou claro, desse modo, que os municípios, enquanto entes federativos mais próximos dos cidadãos, revelam-se os mais indicados para o reconhecimento e o atendimento das necessidades da população local, uma vez que sua proximidade com a população proporciona condições maiores de participação da comunidade na formulação e implantação de políticas públicas, especialmente aquelas de natureza social. Pode-se concluir, pois, que o “IPTU verde” possui potencial de incentivar práticas e construções sustentáveis, contribuindo, portanto, para a formação de comunidades energéticas e o empoderamento social local.
Essa dinâmica, baseada no senso de pertencimento, fomenta benefícios fiscais para os proprietários de imóveis que adotam medidas e tecnologias ecologicamente sustentáveis em seus imóveis. Por sua vez, as pessoas inseridas na comunidade, impulsionadas pela ideia de sustentabilidade, ao receberem o desconto do “IPTU verde”, tendem cada vez mais a aderir a esse tipo de energia renovável, visando à implementação de ações destinadas à preservação ambiental e à promoção da eficiência energética.
5 REFERÊNCIAS
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Notas
1 A pesquisa foi realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
2 A publicação contou com o apoio de bolsa institucional fornecida pela Confederação Nacional de Municípios (CNM).
3 Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, com bolsa PROSUC/CAPES, modalidade I, dedicação exclusiva (2021-2025). Estágio de doutoramento na Universidade de Santiago de Compostela (Espanha), com bolsa PDSE/CAPES (11/2023-05/2024). Bolsista da Confederação Nacional de Municípios em convênio Apesc/CNM. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (2020). Pós-Graduada em Direito Processual Público pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2020). Graduada em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2016). Integrante do grupo de estudos Gestão Local e Políticas Públicas, coordenado pelo Prof. Ricardo Hermany.4
54 Professor da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito- Mestrado/Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC; Pós-Doutor na Universidade de Lisboa (2011); Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2003) e Doutorado sanduíche pela Universidade de Lisboa (2003); Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (1999); Coordenador do grupo de estudos Gestão Local e Políticas Públicas – UNISC. Consultor jurídico da Confederação Nacional de Municípios – CNM.
5 Bercovici, 2004.
6 Souza, 2005.
7 Dallari, 2019.
8 Corralo, 2012.
9 Soares e Machado, 2018: 26.
10 Carrazza, 2011.
11 Nazar, 2009: 39.
12 Paulsen, 2012.
13 Lima, Giacobbo e Hermany, 2023.
14 Lima, Giacobbo e Hermany, 2023.
15 Fiorillo, 2013.